O Aborto é um direito Constitucional?

França foi o primeiro país no mundo a constitucionalizar o direito ao aborto.

Noticiou-se, na última semana, que a França foi o primeiro país no mundo a constitucionalizar o direito ao aborto. Atribui-se a alteração constitucional, após a reversão do julgado Roe vs. Wade (1973) pela Suprema Corte dos EUA em Dobbs v. Jackson Women´s Health organization (2022), onde se afastou o entendimento de mais de quatro décadas no sentido de que a Constituição daquele país mencionava o direito ao aborto, compreendido como direito à privacidade das mulheres. A reversão do julgado sempre fez parte das campanhas presidenciais do partido Republicano.

Os Presidentes Ronald Reagan e George Bush foram eleitos com a promessa de revogação de Roe e “[…] impuseram às nomeações judiciais os critérios ideológicos mais rigorosos e jamais vistos nos Estados Unidos” (DWORKIN, 2019, p. 8), e isso, não apenas para a nomeação dos Juízes da Suprema Corte, mas também para os tribunais federais inferiores.

Na campanha Presidencial de Bill Clinton de 1992 este deixou claro que não nomearia para Suprema Corte quem pudesse votar favor da revogação da decisão que garantia o direito ao aborto, e um dos três votos dissidentes da anulação de Roe em 2022 foi justamente o de Stephen G. Breyer, por ele nomeado, responsável por escrever o voto da minoria.

Com três indicações de Donald Trump para composição da Suprema Corte, este foi o único dos presidente a “cumprir” a promessa de campanha de nomear juízes para reverter o julgado.

A discussão sobre a constitucionalidade do aborto naquele país é relevante por estar intimamente ligado a criminalização no Brasil, isso porque ambos países passaram a punir o aborto em um mesmo momento histórico e pelas mesmas razões iniciais, proteção da saúde da mulher que inicialmente não era criminalizada.

Na abordagem histórica do julgado em Roe, registrou-se que a lei do Texas de 1859 que criminalizava o aborto […]não se relacionava com as origens do common law ou de estatutos antigos (vale dizer, não integrava a tradição histórica-social-normativa da sociedade anglo-saxã); seu fundamento — da lei — residia em questões sanitárias, de segurança para a saúde da mulher grávida, preocupação própria do início do século XIX, e que não mais persistia na década de 70 do século XX, até porque o aborto à época (anos 70, era tão ou mais seguro que o próprio parto”. (SOUTO, 2021, p. 258)

No julgamento, o Tribunal declarou (por sete votos a dois) que a legislação do Texas que criminalizava o aborto era inconstitucional, indo além ao afirmar que “[…] qualquer lei estadual que proibisse o aborto para proteger o feto nos dois primeiros trimestres de gravidez – antes do sétimo mês – era inconstitucional”, ou seja, definiu-se que o direito ao aborto não era absoluto e que o estado poderia legislar para exigir um prazo máximo de gravidez.  Reconheceu ainda que o feto não é uma pessoa constitucional antes do nascimento.

No cenário brasileiro aponta-se que no início da exploração do país pelos portugueses e dizimação dos povos indígenas o aborto, aparentemente, era praticado livremente entre os povos originários e “[…] tinha o condão de vingança oposta pela mulher grávida ao marido que a maltratava. Também o infanticídio se constituía em indiferente penal”. (PIERANGELI, 2001, p. 43)

Com a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil (1808) em 1830 vem o Código Criminal do Império prevendo o crime de aborto nos artigos 199 e 200. Observa-se que a punição era prevista tão somente para quem praticasse o aborto, não prevendo qualquer punição para a gestante que o praticasse ou permitisse sua prática, ou seja, a criminalização visava proteção da mulher e não sua punição. Nesse momento histórico, igualmente, vários estados norte americanos, passaram a criminalizar o aborto, diante do alto índice de mulheres que morriam pela prática do aborto.

Com a proclamação da República, o Governo expediu o Decreto 774, de 20 de setembro de 1890, e tratou no capítulo IV do Título X o crime de aborto em três artigos, e ao contrário da legislação anterior passou a punir a mãe que provocasse ou permitisse que se praticasse o aborto.

O Código Penal de 1940 continuou criminalizando o aborto prevendo as hipóteses de aborto legal e hoje a origem da criminalização (questões sanitárias de saúde da mulher) perderam espaço para discussões políticas, religiosas e filosóficas.

A reversão em Roe acendeu um alerta para o risco da repercussão de julgados que tratam de princípios morais sensíveis dentro de uma sociedade conservadora podem levar ao retrocesso na conquista dos direitos das minorias. Isso levou a França a constitucionalizar o direito ao aborto, saindo, mais uma vez, à frente na Historia.

Ao longo da história, alguns avanços foram feitos, contra o que se entendia como senso comum, baseado na vontade majoritária da sociedade, basta lembrar que a escravidão enfrentou fervorosas vozes contra sua abolição.

O direito ao aborto das mulheres até hoje enfrenta desacordos, porque a sociedade ainda não consegue afastar a religião e a sua própria moral do direito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais.  2ª ed. São Paulo, 2009.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Roe v.Wade, 410 US 113. Supreme Court, 1973, Disponivel em google Scholar:

https://scholar.google.com/scholar_case?case=12334123945835207673&q=roe+v+wade&hl=en&as_sdt=2006 acesso em 22/10/2020.

PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2ª ed. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

SOUTO, João Carlos. Suprema corte dos Estados Unidos: principais decisões. 4ª ed. Barueri/SP/; Atlas, 2021.